
O malbec nosso de cada dia 402i71
Malbec talvez seja o vinho que mais tomei na vida. Eu e a maioria dos privilegiados brasileiros que bebem vinho, vamos combinar. A uva malbec entrou na vida dos consumidores brasileiros ao oferecer preço ível, qualidade e volume de oferta. E um bom marketing, hoje menos agressivo. Basta olhar para as prateleiras dos supermercados, para o catálogo das importadoras, para as cartas dos restaurantes e mesmo aqui no Guia dos Vinhos. Avaliamos exatos 99 rótulos argentinos com a uva malbec em sua composição nas edições de 2023 e 2024. 115 quando acrescentados outros países (incluindo o Brasil, vejam só!). Dá-lhe malbec! 2j3a1m
Na edição de 2023 do Guia o Luigi Bosca Malbec De Sangre Edicion Limitada 2020 obteve a maior nota da avaliação, com 95 pontos. Na descrição do rótulo um resumo do que se espera de um vinho de excelência desta uva: “Um malbec bem elaborado, na cartilha de tintos potentes e equilibrados. Traz notas de frutas vermelhas maduras na medida certa, mesclada com floral (violeta) e notas de agem em carvalho, como café, tostados. Tanino fino e firme com uma nota de cravo no final.”
Como tudo que faz sucesso no Brasil, a crítica e os enochatos, que raramente acompanham o gosto do público, torcem um pouco o nariz para a uva, e pejorativamente classificam todo vinho da cepa de “malbecão”. “Aquela coisa enjoativa e linear”, ai, ai, ai. Na linha de “provou um, provou todos”. Um fenômeno semelhante que acompanha os tintos chilenos da uva carménère. E tome birra com o malbec.
Confesso, sem ninguém me perguntar. Eu curto um malbec. Eu compro malbec. Dos mais simples e bem-feitos aos topos de gama, sabendo o que esperar de cada um deles. Talvez este meu gosto menos alinhado com o dos especialistas seja motivo para cancelamento de vez do clubinho dos entendidos. Fui. Meu bolso, meu gosto, minhas regras. E para quem insiste que não há malbec bom de preço ível, nós estamos aqui para provar o contrário. No Guia dos Vinhos há 34 rótulos de malbec até R$ 100 para mostrar com há qualidade em vinhos nesta faixa de preço, vários com 90 e 91 pontos.
Esta ligação com a uva vem de longe – sou daquela geração que começou a beber vinho com atenção a partir de rótulos argentinos e chilenos - e foi reforçada por uma didática viagem a convite da Wines of Argentina, em 2014, na época representada aqui no Brasil pelo Deco Rossi, que agora tem sua propria importadora, a Winet. Neste tour pela Argentina maratonei 228 rótulos (a maioria malbec, claro), visitei diversas vinícolas e tive contato com dezenas de produtores.
Ok, ok, ok: há também o lado negro da força, o malbec de grande volume, superextraído, desequilibrado, exagerado na fruta, nos aromas e ou carregado na madeira. E em especial há o gravíssimo fenômeno do contrabando, onde o inimigo pode ser até mesmo o El Enemigo, queridinho dos brasileiros, mas neste caso de procedência duvidosa e muitas vezes genérico. Mas aí é crime, não cabe uma avaliação. Quem se arrisca está sujeito à cilada.
Nem todo malbec é igual. Assim como nem todo argentino. O país que produziu Ricardo Darin, Roberto Bolaño e Jorge Luis Borges também gerou Jorge Videla e Javier Milei, né não? Há até um rótulo do enólogo Matias Riccitelli que, com bom humor, aponta as muitas possibilidades da variedade confirma esta tese: This is not Another Lovely Malbec. 91 pontos no Guia dos Vinhos 2023 “Boa opção para quem quer sair do óbvio sem sair da malbec".
Ou seja, há o malbec de volume, para consumo rápido. Há o malbec mais jovem, o orgânico. E ainda aquele mais rústico, sem refinamento algum. Há ainda o malbec de terroir, que aporta caraterísticas dos microclimas e do lugar ao vinho. Ou mesmo aqueles com um perfil mais de velho mundo como os produzidos pela Bodega Weinert. Como me disse alguns anos atrás o enólogo Sebastián Zuccardi, na citada viagem à Argentina, mais importante que a varietal (tipo de uva) é a zona em que ela é cultivada. “A Argentina precisa comunicar o lugar”, defendeu na época.
A malbec encontrou assim, literalmente, seu lugar de fala, e avançou muitas casas no tabuleiro da qualidade e da diversidade de solos. Um exemplo é a propria Zuccardi, de Sebástian, que teve seu malbec Finca Piedra Infinita Supercal 2021, laureado com 100 pontos na última edição do Guia Descorchados. Em texto de duas semanas atrás neste mesmo espaço, Marcel Miwa exemplifica esta questão do lugar ao descrever a subregião de Gualtallary, no Vale de Uco, Mendoza “A primeira e mais didática explicação para entender Gualtallary é que a microzona está dentro do vale de Uco, que por sua vez, está dentro de Mendoza. É como a visão de uma lente com três níveis de zoom.”
As regiões da malbec na Argentina 6h1g26
Mendoza é uma cidade que vive da fama de seus vinhedos. É o principal produtor de malbec do mundo e do país, com 84% do volume. Os vinhedos em Mendoza estão em altitudes médias de 1.000 metros acima do nível do mar. O município é tomado por ruas largas e arborizadas e grandes praças. Toda a região que produz vinho é denominada de Cuyo - engloba Mendoza, San Juan e La Rioja. Cuyo significa, no idioma Huarpe Mikayac, "país dos desertos”.
A terra é árida mesmo, o que é bom para o vinhedo, irrigado pela água que desce das geleiras, fortemente controlada pelo governo. A propósito, o ideal para a planta, segundo explicou Carlos Tizio, atualmente presidente do Instituto Nacional de Vinicultura da Argentina, e que na época da declaração ocupava o cargo de gerente geral do Clos de Los 7, não é o estresse pela escassez de água, mas pelo déficit. Traduzindo, não dê 100% da água que a planta precisa, mas uns 50 a 60%, assim ela busca os demais nutrientes no solo, equilibra seu crescimento e mantém a qualidade das uvas produzidas. Mendoza ainda se divide em cinco zonas: Norte, Leste, Centro, Sul e Vale de Uco. Luján de Cuyo, localizada no Centro, é conhecida como a “La Tierra del Malbec” e junto com Maipú é a região vitivinícola mais tradicional de Mendoza. São tintos mais estruturados, com frutas bem maduras, floral, com bom volume em boca e taninos macios.
As vinícolas mais conhecidas no Brasil estão espalhadas pela região. Nomes como Achaval Ferrer, Dante Robino, Terrazas, Finca Flichman, Luigi Bosca, Pascual Toso, Lagarde, Salentein, El Enemigo, Catena Zapata, Alta Vista, Alto Las Hormigas, Septima, Argento, Escoruhiela Gascón, Clos de los 7, Casarena, Doña Paula, Penedo Borges, La Celia, Kaiken, Rutini, Mendel, Nieto Senetiner, Navarro Correas, Norton, Pulenta, Ricitelli, Suzana Balbo, Trapiche, Trivento, Weinert, Zuccardi. (Conheça os vinhos avaliados no Guia clicando nos links aplicados nos nomes das vinícolas acima)
Mas há que se provar também malbecs dos extremos da Argentina: Salta, ao norte e Patagônia, ao sul.
Salta. Para chegar até a região de Cafayate, onde está concentrada 75% da producão local de vinhos (pouco mais de 3.700 hectares), o viajante pega a sinuosa Ruta 68, ando pela deslumbrante Reserva Natural de Quebrada de las Conchas. Este cenário lindíssimo antecede a visita aos vinhedos de altitude da região de Cafayate. As parreiras estão localizadas entre 1.500 e 3.000 metros acima do nível do mar. Ali próximo, na localidade de Uquía (Jujuy), um vinhedo assentado sobre a mina de Moya, atinge 3.329 metros sobre o nível do mar – a região vitivinícola mais alta do mundo! A chuva é rara, 200 milímetros por ano. Os vinhos têm uma ótima acidez e são mais amigáveis. Os tintos são mais intensos pois o sol, mais próximo pela altitude, faz com que as frutas engrossem as cascas para proteger as sementes, e como se sabe é nas cascas que se concentram aromas, cor e outros elementos dos tintos. Principais bodegas: Colomé, El Esteco, Amalya, El Porvenir, Etchart, Michel Torino, Tukma, San Pedro de Yacochuya.
Patagônia. Se Salta possui os vinhedos mais altos do mundo, a Patagônia exibe os vinhedos mais ao sul do planeta, no paralelo 45. Ao contrário das regiões de Salta e Mendoza, seus vinhedos estão entre 4 e 600 metros do nível do mar, proporcionando uma maturação mais prolongada das uvas. Em termos quantitativos, é quase um dedal de vinho comparado às outras regiões, responsável apenas por 1,8% da area vitivinícola da Argentina. Por conta de suas condicões climáticas, dos ventos frequentes, baixa umidade e ampla diferença térmica entre dia e noite (algo como 20 graus) na época da maturação das uvas, o nível de acidez que se obtém é alto, o que proporciona um bom potencial de guarda. O baixo rendimento dos cachos de uva impõe a produção de vinhos de qualidade. Inicialmente a região ficou marcada pelos pinot noir especiais, muito florais, de ótimo final de boca (um exemplo conhecido é o Chacra, avaliado pelo Guia dos Vinhos). Mas há um enorme potencial também para um malbec mais fino, sem tanta extração, e muito longo na boca. As principais vinícolas são: Bodega del Desierto, Bodega Chacra, Familia Schroeder, Humberto Canale, Bodega del Fin del Mundo, NQN, Noemia, Bodegas Chacra.
Nicolás Catena i5u47
Não há como tratar do tema malbec argentino sem reverenciar o mestre Nicolás Catena. Catena (que para muitos é sinônimo de malbec) abriu o caminho para o malbec argentino de altitude e de terroir, assim como desbravou o potencial da subregião de Gualtallary. O vinhedo de Adriana, localizado na região, é o berço de de ícones da família: Catena Zapata Adrianna Vineyard River (R$ 2.252 na Mistral), que já recebeu 100 pontos de James Suckling e 99 de Robert Parker, e Adrianna Vineyard Mundus Bacillus Terrae 2021, que levou 100 pontos no Descorchados.
Laura Catena, filha de Nicolás, e profunda conhecedora da variedade, detalha em seu livro Ouro dos Vinhedos o processo de desenvolvimento do potencial deste terroir: “Descobri que Adriana jazia no leito de um rio seco que com o ar dos anos havia se movido por atividades vulcânicas, sísmicas e eólicas até criar incontáveis lotes, ricos em diversidade. Vinificando as uvas de cada pequeno pedaço de terra separadamente foi quando encontramos ouro. Aquilo que ninguém esperava encontrar naquele solo estéril, abençoado pelo acaso.”
Catena também foi responsável por realizar a primeira seleção clonal científica do malbec argentino, em 1995, em 135 plantas que estão em todos os vinhedos da família. Recentemente a empresa lançou um malbec que expressa no rótulo a relevância de uma região: Lunlunta. Trata-se do Catena Appellation Lunlunta Malbec 2022, plantado a 920 metros de altitude em 1930, um vinho com aromas florais, frutas maduras e um toque de especiarias e macio em boca. O melhor: tem um valor que cabe nas faixas de preço deste Guia (em torno de R$ 250).
Todos querem fazer malbec na Argentina 62v3y
A malbec atraiu profissionais e investidores de diferentes partes do mundo rumo à Argentina. O americano Paul Hobbs, depois de trabalhar como consultor da Catena, fundou sua empresa, a Viña Cobos. Michel Rolland, o influente consultor francês, que já foi mais pop, também tem seu vinhedo em Mendoza, a Bodega Rolland, sendo o rótulo mais conhecido aqui entre nós o potente Clos de Los 7. Outro francês, François Lurton, pregou suas estacas em Los Chacayes, uma região do Alto Valle de Uco, onde criou a vinícola Piedra Negra. Até produtores importantes do Chile atravessaram as cordilheiras para elaborar malbecs argentinos. Como é o caso Concha y Toro, com a Trivento e Aurélio Montes, que há 24 anos fundou a Kaiken em Mendoza, no Vale de Uco.
O Brasil não podia ficar de fora, não é? No ano ado o Grupo Miolo, num lance ousado, comprou a Bodega Renacer na microrregião de Pedriel, em Luján de Cuyo, Mendoza. Ali funcionará a base tanto para os rótulos da Renacer como do próprio grupo, como o Miolo Reserva Malbec 2024, elaborado com uvas da região e lançado em maio deste ano.
A malbec, originária da França, fez a fama na Argentina, mas deita na cama com outros parceiros também.